Dez romances protagonizados por escritores de verdade
Inauguramos aqui uma série quinzenal com 10 indicações de leitura a cada vez
Dez é um bom número. E um bom pretexto para esta começar uma rubrica de periodicidade flutuante, mas que eu pretendo manter em quinzenal. Para a estreia, qual catei 10 outras amostras de um certo tipo de romance muito comum em tempos recentes: uma obra na qual o autor usa outro escritor, mais antigo e já falecido, como protagonista, em um jogo de espelhos muito em voga na contemporaneidade.
Não confundir com aqueles romances históricos nos quais o autor mencionado faz só uma ponta como elemento de pano de fundo (como Freud, por exemplo, no romance policial A interpretação do assassinato). Ou com aqueles livros como os escritos por Philip Roth ou o recentemente falecido Ricardo Piglia, em que o protagonista (respectivamente, Nathan Zuckerman ou Emílio Renzi) é um alter-ego do autor, mas não se sabe direito o que é ficção ou autobiografia. Nem ainda com romances como a trilogia de autoficção “biográfica” de J.M. Coetzee, em que ele próprio se retrata como personagem na infância, na juventude e até mesmo depois da morte.
Aqui, o que temos é um romance em que o protagonista ou um dos personagens de destaque é um escritor do mundo real, e a trama até certo ponto faz referência ou aproveita fatos de sua biografia. Começando então a série Dez Livros:
DEZ LIVROS com escritores do mundo real como protagonistas.
O Mestre, de Colm Tóibin
Em mais de um texto sobre Henry James já se disse que ele foi o mais europeu dos escritores americanos, tanto nos temas quanto no cuidado esmerado com a prosa, em livros como A Outra Volta do Parafuso e Retrato de uma Senhora. O próprio James achava isso, já que tentou garantir uma certa estabilidade financeira mudando-se para Londres e tentando emplacar como dramaturgo nos palcos ingleses (o equivalente ao cinema americano do período, um lugar em que atuavam nomes como James M. Barry e Oscar Wilde). É, desta lista, o exemplo mais bem acabado de uma verdadeira “biografia romanceada”, e aborda justamente os anos em que James, já consagrado por Retrato de Uma Senhora, tenta o sucesso nos palcos londrinos com a peça Guy Domville — e ficamos sabendo no romance também que a peça foi um fiasco, vaiada na estreia. Tóibin recorre a cartas e documentos do próprio James para esta reconstituição escrita com o esmero que James colocava em suas próprias obras. Tóibin também é hábil para abordar aquilo sobre o que não há certeza histórica, como a reservadíssima vida privada do autor e sua sexualidade até hoje mergulhada em incerteza. Tradução de José Geraldo Couto. Companhia das Letras, 440 páginas.
Arthur & George, de Julian Barnes
Mestre elegante da prosa britânica atual, Julian Barnes reconstrói um episódio real em um romance que dialoga com as questões modernas da complicada relação entre Europa e suas ex-colônias ocidentais. Troca-se, obviamente, o árabe dos dias de hoje pelo hindu do início do século 20, mas permanece a questão da identidade questionada dos descendentes dos países colonizados — bem como sua difícil aceitação como cidadão na metrópole. O romance acompanha as vidas paralelas do escritor Arthur Conan Doyle, aquele mesmo que você conhece, o criador de Sherlock Holmes, e do descendente de indianos George Eidalji. Desde o início, fica claro que se tratam de vidas desiguais. Conan Doyle e Eldalji não são de origem aristocrática, pelo contrário, e ambos ascendem por meio do estudo e do trabalho duro, mas enquanto Doyle vai, com seu temperamento exuberante, tornando-se logo uma estrela na sociedade e na literatura, Eldalji, que trabalha na companhia de trens de Londres, é, desde a infância, vítima de preconceito e, por fim, se vê acusado de mutilar vacas na região rural em que vivem seus pais. É condenado em um julgamento relapso e aprisionado. Quando, abalado pela morte da esposa e à procura de um desafio que lhe tire de sua apatia (Doyle é retratado como um homem com um pendor pela ação imediata), o romancista lê sobre o caso nos jornais, as vidas de ambos se cruzam, e o escritor se engaja em uma campanha para que um tribunal reconheça a inocência de Eldalji. Quando se fala que as vidas de ambos “se cruzam”, a afirmação pode ser usada em sentido literal no caso do romance. Até se encontrarem no julgamento, Arthur e George têm suas trajetórias apresentadas alternadamente, ressaltando o efeito de suas vidas paralelas no desigual sistema social inglês. Tradução de Jorge Viveiros de Castro. Rocco, 442 páginas.
Stevenson sob as Palmeiras, de Alberto Manguel
Sim, a Companhia no início da década passada lançou uma coleção, sete livros, que pretendiam unir uma trama policial com a figura de um grande escritor. Só eles já serviriam para quase completar esta lista, mas nem todos se ajustam à proposta que adotei, de termos um escritor que existiu de verdade como protagonista. Alguns deles usam o autor escolhido como coadjuvante, um pretexto colateral. Crítico, professor e um grande historiador da leitura e da literatura, Manguel cria não só uma história policial com toques do horror do próprio Robert Louis-Stevenson, autor de O Médico e o Monstro, mas uma reflexão sobre a natureza da ficção. Doente de tuberculose, Stevenson muda-se para a ilha de Samoa, em meio a nativos que não conhecem o conceito de ficção, já que para eles toda história é uma verdade. Uma circunstância que passe de pitoresca a perigosaa quando ele é envolvido por uma trama de crime que será atribuído pelos locais ao “contador de histórias”. Suspense e erotismo se combinam nesta obra que é uma das mais bem realizadas da série toda. Tradução de Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 88 páginas.
Nosso GG em Havana, de Pedro Juán Gutiérrez
Anos atrás, o amigo Pedro Gonzaga, que entrevistou Pedro Juan Gutiérrez a respeito deste livro para uma revista hoje extinta, comentou que ouviu do escritor que ele foi produzido para figurar na coleção essa da Companhia protagonizada por autores, mas que desacordos entre o cubano e a editora fizeram com que a casa declinasse da publicação. O livro acabou saindo no Brasil anos depois por outra casa publicadora, a Alfaguara, selo da Objetiva- e que, por essas maluquices da história recente do mercado editorial brasileiro, hoje é a mesma editora que recusou o livro, já que Objetiva e Companhia se fundiram. Na Cuba pré-revolução castrista, um homem que se identifica como Graham Greene é preso num bordel homossexual da Havana de então, um paraíso para os pecados da carne. O verdadeiro Graham Greene, que na verdade estava em sua casa na Itália, é informado do episódio e parte para Cuba para esclarecer quem é o sujeito preso em seu lugar. Ao chegar à quente e pastosa Havana, Greene, inglês católico, é envolvido ao mesmo tempo pelo clima de pecado da ilha e por uma rocambolesca trama de espionagem que inclui russos, americanos, refugiados nazistas, uma organização judaica responsável por caçar esses mesmos refugiados e mafiosos. A idéia, já expressa no título, é que a experiência de alguma forma vai dar origem a um dos clássicos de Greene, Nosso Homem em Havana. Tradução de Magda Bigotte de Figueiredo. Alfaguara, 128 páginas.
Os Crimes do Mosaico, de Giulio Leoni
Embora tenha uma vida com uma sequência de eventos documentada, há muito sobre a personalidade de Dante Alighieri que escapa ao leitor moderno de sua Divina Comédia. Nesse terreno amplo e inexplorado, Giulio Leoni não encontra obstáculo para desenhar a personalidade do autor neste livro e nos outros que compõem uma trilogia policial protagonizada pelo poeta. Prior de Florença no ano 1300, Dante é um sujeito irascível, arrogante, temperamental e autoritário, e passa os três livros mais arranjando os problemas políticos que o levariam ao exílio do que propriamente desvendando os crimes brutais que cruzam seu caminho. Ou seja, é flagrante a inspiração dos detetives “durões” do noir clássico americano, o que pode incomodar um leitor mais sensível a anacronismos. Neste livro em particular, um operário de um mosaico grandioso que estava sendo assentado na parede de uma igreja em reforma é encontrado morto, com todos os indícios de uma morte praticada por magia negra. Autoridade de Florença, cabe a Dante a resolução do mistério e a manutenção da ordem. Esse livro foi precedido por Os Crimes da Medusa, sem edição no Brasil, e seguido por Os Crimes da Luz. Tradução de Gian Bruno Grosso. Planeta, 384 páginas.
Boca do Inferno, de Ana Miranda
A escritora Ana Miranda já surgiu dividindo opiniões entre os que a consideraram uma grande artista e outros críticos que depreciaram um certo rebuscamento deslocado que parecia disfarçar defeitos de fabulação. Considerações que foram feitas já sobre este romance, de 1989, sua estreia literária. O protagonista é um dos mais interessantes personagens dos primeiros tempos do Brasil, o poeta barroco e grande provocador Gregório de Mattos Guerra, autor de sátiras e de poemas fesceninos e debochados que se incluem entre os melhores da tradição subterrânea do sarcasmo em língua portuguesa. Passado em 1863, o romance recupera em forma de ficção as lutas políticas que agitavam a Bahia, então fulgurante capital comercial, e como essas disputas entre facções se refletem na cidade e na vida do protagonista. A linguagem vai do suntuoso ao vulgar, emulando o próprio espírito de contradições e oposições que animava o barroco do período. Gregório, oposicionista, envolve-se com uma mulher que, ele saberá, tem ligações com uma emboscada ao alcaide-mor, pretexto para que o mandatário da Bahia inicie uma perseguição política violenta aos adversários _ Gregório entre eles. Não foi o único livro de Ana Miranda com um escritor como protagonista. Ela mais tarde lançaria , com o poeta Gonçalves Dias como personagem. Companhia das Letras, 312 páginas (na edição de bolso, mais recente).
A Ilha dos cães, de Rodrigo Schwarcz
Romance de estreia deste jornalista gaúcho, é um bom exemplar de um tipo de literatura entre a fantasia e a criação de mundos alternativos que só recentemente começou a ganhar mais adeptos. Schwarcz imagina um mundo em que os europeus desistiram das grandes navegações depois de dois ou três encontros com alguma coisa sombria e monstruosa em alto mar. Sem as grandes navegações europeias, as Américas se desenvolvem de uma maneira completamente diferente, os grandes impérios indígenas americanos sobrevivem à dizimação perpetrada pelo homem branco e os impérios Incaico e Azteca estão em guerra por território séculos após o que deveria ter sido o descobrimento. O detalhe é que toda essa narrativa é na verdade imaginada pelo explorador e escritor inglês Richard Burton, preso em uma ilha desconhecida após um naufrágio quando voltava de… Santos, a cidade brasileira, onde foi adido (dado que realmente consta da biografia de Burton). Bertrand Brasil, 200 páginas.
As Horas, de Michael Cunningham
Relutei sobre colocar ou não este aqui na lista justamente devido à projeção obtida pelo romance após a adaptação cinematográfica com Nicole Kidman interpretando Virginia Woolf com um nariz postiço de dar medo (e que não lembra lá muito bem o rosto real da escritora nas poucas fotos disponíveis). Calcado assumidamente em Miss Dalloway, de Virginia (livro que também ecoa no romance de Adriana Lunardi Corpo Presente), é a descrição minuciosa de algumas horas na vida de três mulheres separadas no tempo e no espaço: Virginia, que, em 1923, escreve Miss Dalloway na casa de campo em que vive com o marido, nos arredores de Londres, ao mesmo tempo em que tenta manter sob controle os sintomas de demência que começam a se manifestar; Laura, uma dona de casa problemática e oprimida pela vida familiar em 1949, que está justamente lendo uma edição de Miss Dalloway; e Clarissa, a atualização em carne e osso da miss Dalloway do livro. Cinquentona e ex-hippie, Clarissa ecoa no seu próprio comportamento o da senhora Dalloway do romance, que começa o dia escolhendo flores para uma festa. A prosa de Cunningham é difícil, lenta, minuciosa na descrição de cada sensação, no mapeamento obsessivo da paisagem emocional de cada personagem — claramente, uma homenagem à prosa da própria Virginia, já que em outro romance do mesmo autor, no qual Walt Whitman é um personagem, o tom é mais aberto, amplo, vibrante e enérgico, numa emulação da própria obra de Whitman. Tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 184 páginas.
Dias de Faulkner, de Antônio Dutra
Visitas de grandes autores ao Brasil invariavelmente dão na mesma: o cara é levado para cima e para baixo para apreciar o cenário botocudo local, e, se é gentil, trata todo mundo bem e depois suspira de alívio ao voltar para casa. Se, ao contrário, o autor for uma mala, já faz questão de deixar claro o desagrado no saguão do aeroporto. O mais engraçado é ver depois de uns 50 anos aqueles artigos alentados tentando recuperar a passagem do sujeito por aqui naqueles dias de tédio e inferno como se fosse uma grande coisa. Não é o caso deste livro (a capa é essa mesma, não é erro meu. É uma proposta meio “artê”) de Antônio Dutra, que usa do recurso da ficção para reconstituir a visita de William Faulkner ao Brasil em 1954, disperso, mal-humorado, angustiado para ficar sozinho em seu hotel e se virando como pode enquanto é apresentado a figuras relevantes do cenário intelectual brasileiro, como Lúcio Cardoso e Cecília Meirelles. Faulkner não é uma presença sólida, pelo contrário, é claramente alguém que não quer estar aqui, e é nesse desagrado que Dutra vai construir o vínculo de sua novela com a obra do autor de Luz em Agosto. Imprensa Oficial, 136 páginas.
O Pálido Olho Azul, de Louis Bayard
Edgar Allan Poe vem sendo escolhido sistematicamente como personagem por vários autores — e até por filmes e histórias em quadrinhos. e a maioria dessas obras segue um padrão que já virou fórmula: a estrutura do livro mistura elementos da vida do escritor norte-americano com tintas do romance policial que ele ajudou a criar. Achei mais prático escolher um apenas. Este O Pálido Olho Azul toma como mote e cenário um ponto da obscura biografia do escritor: sua passagem fugaz como cadete pela Academia Militar de West Point — da qual foi dispensado por “problemas disciplinares” com pouco mais de um ano de estudos. Hoje, a Academia Militar é a escola na qual se forma a elite americana, mas, nos 1830 em que se passa a história, West Point é uma iniciativa contestada, alvo de muitas críticas quanto à sua própria necessidade. Para piorar, no romance de Bayard a instituição é aterrorizada por crimes macabros envolvendo estudantes do local. Um detetive aposentado chamado Augustus Landor é chamado pela direção da academia para investigar discretamente o caso, fazendo o possível para que o estrago à imagem do estabelecimento seja mínimo. Landor escolhe como seu assistente e espião na comunidade fechada dos cadetes o jovem estudante Poe. Um Poe que é uma caricatura adolescente de sua imagem mais difundida: atormentado, romântico, dramático, mórbido, obcecado pelo sobrenatural e pela mãe, morta quando o garoto ainda era criança. A relação de Poe com o padrasto no livro também não é das melhores, já que o garoto está sendo enviado para a escola como uma última tentativa de ser “endireitado”. Embora seja um romance bem urdido, não deixa de ser um defeito da narrativa que as aparições de Poe roubem o interesse da trama, que começa bem e termina com um certo artificialismo histérico que também tenta emular temas recorrentes a Poe: criptas, cavernas subterrâneas e experiências macabras com o sobrenatural. Tradução de Lea P. Zylbercht. Planeta, 432 páginas.