Bábel, vítima do estalinismo
Obra seminal do escritor foi também o motivo de sua desgraça, da perseguição política à sua obra, e, no fim, de sua morte.
Em uma época em que tanta gente parece interessada em reabilitar o regime de Stálin, é uma boa oportunidade para você prestar atenção em Isaac Bábel.
Você provavelmente não conhece Isaac Bábel (1894–1940) — e muitos dos que conhecem, incluindo o autor deste texto, só tiveram contato com sua obra depois que o autor foi mencionado no romance Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, de Rubem Fonseca, no qual um cineasta brasileiro era levado à União Soviética para trabalhar no roteiro de um longa-metragem que adaptava um fictício romance de Bábel, encontrado anos depois de sua morte. Depois do livro de Fonseca, aquela que é considerada a obra-prima do escritor russo, A Cavalaria Vermelha, chegou a ser lançada pela Ediouro. E teve um relançamento de luxo numa bela edição pela CosacNaify há uns 10 anos, desta vez rebatizada como O Exército de Cavalaria. Agora, deve estar de novo fora de catálogo. Mais recente, pero no mucho, é a edição dos Contos de Odessa feita pela Companhia.
Numa literatura russa já por si desconcertante em sua riqueza, Bábel é uma figura de destaque e, paradoxalmente, uma personagem pouco conhecida. O próprio Máximo Górki o considerava um representante do que de melhor a Rússia tinha para oferecer em termos de literatura, e mesmo assim Bábel é um autor sem renome. Parte dessa condição se deve a ele ter publicado pouco em vida. Outra parte pode ser atribuída a uma cortina de silêncio envergonhado jogada pela intelectualidade de esquerda — considerado romântico, decadentista e contra-revolucionário, Bábel foi preso em 1939 e, um ano mais tarde, em janeiro de 1940, morto durante os expurgos do sombrio período estalinista (1924–1953). Muitos de seus escritos inéditos foram queimados pelo regime.
Os 36 contos de Bábel reunidos em O Exército de Cavalaria são resultado de um período que o autor passou, como soldado raso e correspondente do jornal militar O Cavalariano Vermelho, junto às tropas da cavalaria russa durante a sangrenta guerra de fixação de fronteiras com a Polônia, entre 1920 e 1921. Os cavalarianos, no caso, não eram simples russos, mas os folclóricos cossacos, cavaleiros que valorizavam sua liberdade individual, independente de fronteiras, e tinham prazer pelo combate.
A leitura dos contos, muito curtos, alguns não ultrapassando duas páginas, é, também, uma forma de entender por que Bábel se tornou uma vítima inevitável da intolerância estalinista. Repletas de violência e barbárie, contadas com um tom econômico e ao mesmo tempo coalhado de metáforas e sugestivas imagens, as histórias de Bábel são narradas em primeira pessoa, quase todas do ponto de vista de um único personagem, Kiril Vassílievitch Liútov, jovem judeu agregado ao batalhão de cossacos e um alter ego do próprio Isaac Bábel, judeu nascido em Odessa e ele próprio um militante revolucionário, por certo tempo.
São textos que flutuam entre a crônica e o conto — muitas vezes a história é um fiapo narrativo, mero pretexto para a recriação de uma atmosfera. No limite, seus textos são também uma crua análise do paradoxo inescapável do intelectual, aquele que, por definição, seria o responsável pela crítica e pela reflexão de modo a pautar a ação transformadora do mundo. Nas narrativas de Bábel, esse intelectual, que vem a ser ele mesmo, não influi na voragem da verdadeira ação transformadora, a da violência, pautada pelos mais atávicos instintos.
O olhar do escritor é o de um homem ao mesmo tempo horrorizado com a brutalidade dos que estão à sua volta e fascinado pela nobreza rude daquelas figuras de resoluta ignorância. Em muitas das histórias do livro, o protagonista, por um urgente artifício narrativo, entrega a palavra a outros personagens, acentuando o caráter de testemunha deslocada que o autor assume perante suas criaturas. É o caso, por exemplo, do brutal Uma carta, no qual um jovem conta com minúcias, em uma correspondência a sua mãe, a maneira pela qual matou o próprio pai — militar do exército inimigo que já havia, por sua vez, assassinado antes seu outro filho, irmão do rapaz que assina a carta.
Em uma época em que a experiência comunista recém aflorava com a promessa de uma utopia igualitária, o que Bábel testemunha — às vezes abandonando o papel passivo de observador e cedendo ao jogo — é a repetição das atávicas estruturas de dominação pela força. Uma das mais belas narrativas do livro, Guedáli, é apenas um diálogo do narrador com o dono de uma loja de quinquilharias, judeu como ele, na véspera do sabá. Para o idoso comerciante, do alto de suas barbas ancestrais, a violência utópica da Revolução e a violência reacionária dos poloneses não faz lá muita diferença: “Mas o polonês estava atirando, meu caro pan, porque ele era a contra-revolução. E vocês atiram porque são a Revolução”.
O contraste entre o que prega a revolução em que Bábel acredita e o que ele efetivamente vê, e às vezes faz, nas vastidões geladas da fronteira é uma das molas do livro. Em Meu primeiro ganso, Bábel/Liútov se apresenta à companhia em que servirá e é achincalhado pelo comandante por usar óculos. Designado para um alojamento numa casa ocupada, é hostilizado pelos cossacos que dividirão o lugar com ele (um deles, mais violento, pega o baú em que estão as coisas de Liútov e o arremessa violentamente, quebrando-o). A violência só cessa quando o protagonista esmaga com os próprios pés o ganso da dona da casa em que está alojado e a obriga, sob violenta coerção, a cozinhá-lo para ele. É só aí que Liútov ganha o respeito dos demais: “O rapaz é dos nossos disse um deles, deu uma piscada e pegou uma colherada de chtchi”