Mutarelli e o oráculo da nicotina
Como o escritor e quadrinista brasileiro faz de uma brincadeira que todo mundo já pensou um dia um elemento rico em um livro poderoso
Entro na estação
Estação rodoviária.
Estou ansioso.
Corro ao guichê.
Não ao que vende bilhetes,
ao que vende cigarros
Um maço de Cowboys Light, por favor
Analiso a frente do maço.
Com receio, viro.
Estampado,
o Natimorto.
Voo até a plataforma de desembarque.
Aguardo ansioso.
Tiro um pequeno bloco de notas.
Mentalizo:
o Natimorto.
Aguardo.
Estudo os novos arcanos.
Creio em meus pensamentos.
Ontem foi:
“A Rainha despreza o Rei pelo que sai de sua boca”.
E hoje me encontro aqui, esperando a cantora.
Mesmo advertido de que
“Em gestantes, o cigarro provoca partos prematuros e nascimento de crianças com peso abaixo do normal e facilidade de contrair asma”,
acendo um cigarro.
O celular anuncia o chamado, numa velha sonata.
Muita gente já teve alguma ideia engraçada e/ou cretina ao comprar seu cigarro (quando mais gente comprava cigarros, imagino, dado o quanto o tabagismo foi sendo socialmente menos tolerado nos últimos 20 anos) e receber a caixinha com aquelas imagens grotescas e educativas sobre os malefícios do fumo. Alguns, fiéis à missão da arte de plasmar um pouco do espírito do tempo, resolveram levar isso para suas obras.
Muitos aí não conhecerão, mas há um filme. Não, há o filme sobre o livro do Mutarelli do qual ainda falaremos, mas há outro. O autor deste texto assistiu, em 2003, enquanto trabalhava na cobertura do Festival de Gramado, à apresentação do curta-metragem No Bar, dirigido por Cleiton Stringhini e Paulo de Tarso Mendonça, e que vocês podem ver abaixo na íntegra (dura oito minutos, uns sete se pular os créditos):
Algum tempo depois disso, outro artista apresentou seu pitaco tendo como mote as imagens das carteiras de cigarro: Lourenço Mutarelli, que na época, segundo semestre de 2004, era mais conhecido pelos apreciadores de quadrinhos (impressionados com seu traço barroco e maneirista) do que como escritor (ele havia recém publicado seu primeiro romance, O Cheiro do Ralo, e o livro ainda não havia virado filme). Mutarelli lançou O Natimorto pela Editora DBA. O livro veio a público em ótima companhia: na mesma fornada, saía Gozo Fabuloso, obra póstuma e inédita de Paulo Leminski, A Idéia de Matar Belina, uma coletânea com contos de um pioneiro da literatura policial no Brasil, Luiz Lopes Coelho, e Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão, contos intimistas da jornalista e escritora paulista Cecília Prada.
O livro era parte da coleção Risco: Ruído, que marcava a entrada da DBA (especializada em livros de design) no mercado de ficção literária. Pela mesma série, vieram a público ainda o mítico Phutatorius, de Jaime Rodrigues, um romance romeno, Por que a Criança Cozinha na Polenta, o primeiro romance de Daniel Pellizzari, Dedo Negro com Unha, e Cavernas & Concubinas, primeiro livro do famoso Cardoso, às vezes conhecido pelo pseudônimo de André Czarnobai. Uma coleção que tinha uma proposta bacana, mas que desceu pelo ralo (sem trocadilhos) e foi interrompida em meio a vários problemas de distribuição.
Mas voltando aos maços de cigarro: o lance é que Mutarelli faz das fotos antitabagismo (como vocês puderam ler no trecho lá de cima) o oráculo particular de um anti-herói desajustado no mundo e na própria pele, um suejtio ao mesmo tempo frágil e monstruoso, um escroto desesperado — um pouco como o protagonista de O Cheiro do Ralo. Caçador de talentos musicais, o personagem tenta prever seu futuro (e o de seus empreendimentos) nas figuras macabras estampadas em maços de cigarro associando-as com figuras do tarô.
Um dos aspectos mais impactantes do livro é o modo como essa aparente mania inocente compartilhada por muitos, como eu comentei no início, faz parte de uma estratégia desesperada do protagonista, um homem vulnerabilizado por um mundo cada vez mais áspero, de manter um mínimo de controle sobre a sua vida, transformação o oráculo da nicotina em uma forma retroativa de “ler” os eventos do dia como predeterminados, tirando assim o peso do absurdo cotidiano e da agressão miúda diária que o homem sofre todos os dias (e que ele projeta na figura idealizada da cantora que ele decide agenciar e cuja voz ele — e este é o ponto importante, só ele — considera angelical)
O Natimorto também foi transformado em filme, dirigido por Paulo Machline, com Simone Spolladore e o próprio Mutarelli como o protagonista. Infelizmente, embora tenha se provado um ótimo ator em papeis coadjuvantes, ao ser encarregado de segurar a onda de um filme inteiro, Mutarelli não está á altura do texto que ele próprio escreveu e que ele muitas vezes declama como se o estivesse lendo em um jogral, e não interpretando em uma cena.