Os contos policiais de Fernando Pessoa

Autor deixou inacabadas várias histórias inspiradas nos clássicos da primeira fase do gênero da literatura de crime.

Admirável Mundo Livro
8 min readSep 10, 2020

Nota: este ensaio é um material complementar que expande alguns pontos do vídeo que publicamos esta semana no nosso canal. Assista abaixo:

Em alguma realidade paralela a esta em que vivemos, a língua portuguesa desenvolveu ao longo do século 20 uma escola rica e interessante de literatura policial, a exemplo que ocorreu com o idioma francês e com os países da península escandinava. Nesse universo alternativo em que tudo correu de modo ligeiramente diverso, é bem possível que o grande patrono do gênero em português tenha sido Fernando Pessoa.

Um dos maiores nomes da poesia, Pessoa é uma daquelas raridades num mundo infeliz de poucos leitores: um poeta conhecido até mesmo por quem não lê. Vários de seus versos têm circulação corrente quase como ditados populares, e é bem conhecida por muitos, embora nem sempre bem conhecida, a sua estratégia criativa dos heterônimos, personagens ficcionais com os quais Pessoa assinava poemas oriundos de diferentes facetas de sua criatividade. O que menos gente sabe é que Pessoa também experimentou aqui e ali algumas incursões na prosa, burilando alguns contos que deixou em diferentes estágios de finalização e desenvolvimento. E boa parte deles foram histórias de inspiração policial, como veremos adiante.

Fernando Pessoa aos 16 anos, com a mãe, o padastro e os irmãos

Nascido em Lisboa em 1888, Fernando Pessoa não foi, durante a vida, um homem propenso a viagens. Mas um dos pontos fundamentais de sua biografia é o fato de que ele viveu nove anos de sua infância e primeira juventude na África do Sul, na época uma colônia inglesa. O padrasto de Pessoa era o cônsul português na cidade de Durban, o que levou o futuro poeta a ser alfabetizado tanto em inglês quanto em português — alguns de seus primeiros poemas, aliás, foram compostos no idioma de Shakespeare.

Essa formação o tornou desde muito cedo um entusiasta da literatura em inglês. Algumas de suas paixões literárias de juventude persistiriam por toda a vida, como William Shakespeare e John Milton. Outras, como Walt Whitman ou Oscar Wilde, ele reconsideraria em seus últimos anos. Mas, em sua biblioteca pessoal, cujo catálogo pode ser visto online neste endereço, também estão presentes autores policiais clássicos de língua inglesa como Arthur Conan Doyle, G.K. Chesterton e R. Austin Freeman, além do próprio inventor do gênero, Edgar Alan Poe, um autor de quem Pessoa admirava a poesia (é dele uma das traduções mais conhecidas em português do clássico poema O Corvo). A biblioteca de Pessoa tinha espaço também para Crime and Detection, uma coletânea de contos policiais organizada por um dos primeiros historiadores e intelectuais dedicados ao gênero, E. M. Wrong.

Sumário do nº 1 da revista Contemporânea, com o conto “O Banqueiro Anarquista”

Esse gosto de pessoa pelo policial viria a se cristalizar em tentativas do autor português para escrever suas próprias histórias do gênero, contos que ele próprio definia como “policiários”. Todos podem ser incluídos em uma categoria maior que o próprio Pessoa definia como seus “contos de raciocínio”, ou seja, histórias em que um raciocínio intelectual é desdobrado até o limite por meio de uma dialética lógica implacável que por vezes defende proposições bem pouco ortodoxas, levando a conclusões muitas vezes paradoxais. É esse, por exemplo, o caso do único dos contos de Pessoa que pode ser considerado realmente “pronto”: O banqueiro anarquista, publicado em 1922 na revista Contemporânea. Nessa novela, toda ela um diálogo ambientado após um jantar, o narrador ouve a explicação lógica de como seu interlocutor, um banqueiro de fortuna, se diz um dos poucos homens realmente anarquistas, dado que reuniu sua riqueza como forma de garantir que jamais se submeterá a qualquer poder. Ou seja, ele realizou, para si mesmo apenas, a verdadeira revolução anarquista .

Mas se quase todos os contos de Pessoa eram, a seu modo, “de raciocínio”, apenas um subgrupo bem definido deles pode ser chamado de “policiário”. Fiel às tradições da primeira fase do gênero, protagonizada por investigadores e detetives que resolviam seus casos amparados na mais pura lógica, quase sem confrontos físicos com os criminosos, Pessoa criou ele próprio três “detetives”. Deles, o mais bem esboçado é o Dr. Abílio Quaresma, presente nas histórias mais bem trabalhadas e quase prontas, como O Caso Vargas e O roubo da quinta das vinhas.

Assim como exemplos da literatura policial mais clássica, voltada para a dedução e o raciocínio mais do que para a ação ou a atmosfera, Quaresma é um diletante hábil que se apresenta para ajudar a polícia nos momentos em que ela está perdida e sem pistas — como também era o próprio Sherlock Holmes, de Conan Doyle, o Dupin de Edgar Alan Poe e o então recém-surgido Hercule Poirot de Agatha Christie. Em O Caso Vargas, ele aparece lá pela metade do conto, que se dedica inicialmente a estabelecer os fatos do caso: um homem chamado Carlos Vargas certa noite deixa a casa de um amigo, um engenheiro da marinha de nome Pavia Mendes, carregando os planos de um novo submarino. No caminho para casa, é abordado por um homem desconhecido e, alguns momentos depois, aparentemente comete suicídio — Vargas foi morto pela própria arma. Ao mesmo tempo, os planos do submarino e todo o dinheiro e os documentos de Vargas parecem ter sido roubados. A polícia se dedica primeiramente a estabelecer a trajetória do morto e os álibis de seus amigos mais próximos, Pavia Mendes e o jovem Custódio Borges, um vizinho a quem Vargas havia prometido emprestar dinheiro para uma viagem.

Quando a polícia acredita ter desvendado as pontas soltas do crime, Quaresma procura o juiz de instrução do caso, Fonseca, e o detetive responsável, o agente Guedes, para apresentar o que ele considera a solução do crime. A maioria dos romances policiais da primeira fase do gênero escora-se na capacidade sobre-humana de seus protagonistas de fazerem conexões e interpretações com base nas informações sobre o caso. Levando essa característica ao limite, Pessoa faz Quaresma apresentar uma solução obtida puramente pela especulação do raciocínio lógico a partir das informações veiculadas sobre a morte de Vargas:

“Não fui testemunha de nada, e tenho conhecimento de tudo, respondeu o dr. Quaresma. O que venho trazer não são factos mas raciocínios; isto não traz só elementos para a verdade, mas a própria verdade. Se V.a Ex.a prefere que se diga assim, direi assim. Venho trazer argumentos. Os factos são cousas duvidosas. Contra argumentos não há factos.

O intrigante no modo como Pessoa parecia querer estruturar a história (que foi deixada incompleta e com vários pontos “em branco”, como se faltassem cenas inteiras de um filme) é que é um conto menos sobre o crime e mais sobre os processos de raciocínio de um investigador. A segunda metade do texto é um longo monólogo ensaístico no qual Quaresma explica passo a passo as etapas pelas quais seu raciocínio lógico implacável resolveu não apenas este crime, mas qualquer crime, cuja natureza é ampla e detalhadamente discutida.

Um discurso parecido será dado por Quaresma em outro dos contos inacabados de pessoa, O Roubo na Quinta das Vinhas. Nessa história, um homem que estava presente na Quinta título em certa meia-noite de setembro relata a Quaresma o assalto que testemunhou no local. O produto do roubo é uma expressiva quantia de dinheiro em títulos bancários. A polícia suspeita da ação de uma quadrilha ajudada por alguém de dentro, já que os cães de guarda foram envenenados, a janela do escritório foi quebrada e o cofre explodido com dinamite. Como resultado, um dos empregados da casa, acusado anteriormente de um furto, está preso.

Embora tivesse criado outros dois raciocinadores que contribuem para resolução de crimes, o chefe de polícia Guedes e o folclórico Tio Porco, Quaresma era mesmo o centro do projeto “policiário” de Pessoa. Médico de formação, mas sem prática clínica, muito magro, de aparência comum, o personagem Quaresma tinha uma saúde debilitada por anos de consumo desenfreado de tabaco e álcool. Assim como Sherlock Holmes vivia na Baker Street 221-B, um endereço fictício em uma rua londrina real, Quaresma residia num quarto alugado em um terceiro andar na Rua dos Fanqueiros, em Lisboa.

Longe de mero passatempo, os contos policiais de Pessoa eram um projeto caro ao autor. Pessoa começou e não concluiu um bom número de histórias com Quaresma. Assim como no universo de Holmes, no qual é Watson o redator dos casos que viu o detetive resolver, o projeto de Pessoa para um livro com Quaresma previa um prefácio no qual o próprio autor contava que Quaresma já teria “morrido” à época da redação de suas aventuras, e que foi o impulso de fazer o mundo conhecer aquele personagem tão peculiar o motivo de reunir em um volume o máximo de histórias com os casos resolvidos pela inteligência maravilhosa do médico-detetive. Mostrando que via seus contos policiais como um trabalho não menos importante que sua poesia, Pessoa conta em uma carta enviada em 1935 a seu amigo Adolpho Casais Monteiro que, antes de finalmente decidir publicar seu livro de estreia, Mensagem, em 1934, ele hesitou por um tempo pensando se deveria estrear com um livro policial:

“Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do gênero de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas trezentas e cinqüenta páginas –, englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele-mesmo ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar”

Nos últimos anos de sua vida, Pessoa se dedicou a uma infinidade de projetos que não conseguiu concluir, entre eles o de arrematar as histórias de Quaresma e lançá-las em um conjunto chamado Quaresma Decifrador. Infelizmente, ele morreu relativamente jovem, em novembro de 1935, e todos os contos ficaram por concluir. Muitos deles não haviam sido desenvolvidos para além de uma simples ideia. Alguns eram histórias quase completas, mas sem o final. Outros tinham um esboço de solução para um mistério que não havia ainda sido narrado. Em todos faltam cenas e passagens de transição, com Pessoa dando saltos entre trechos importantes do livro e deixando para o final os momentos de transição entre uma cena e outra.

Claro que Pessoa não foi o único pioneiro da literatura policial em português. Dezoito anos antes do poeta nascer, em 1870, os jovens escritores e grandes amigos Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, sim, ele mesmo aquele dos Maias e do Primo Basílio, haviam escrito O mistério da Estrada de Sintra, um livro peculiar na história da literatura portuguesa por ter sido não apenas um projeto literário, mas uma trollagem histórica no público português. Essa é uma história para outro vídeo, mas o básico é que ambos publicaram o livro em capítulos no jornal Diário de Notícias, de Lisboa, na forma de cartas enviadas por supostos leitores. Muita gente pensou, assim, no início da publicação, que o “mistério” da história era um caso real que estava sendo relatado em prolixas cartas mandadas ao jornal. Mas esse livro, escrito a quatro mãos em uma colaboração errática, logo descambou de uma narrativa de um crime para um drama romântico gótico. Por isso, naquele nosso exemplo hipotético lá do início, é Pessoa, cujos contos de raciocínio rebuscado apegam-se de modo mais direto à forma do gênero.

Tivesse conseguido terminar seus textos policiais e publicá-los como o planejado, Pessoa talvez pudesse ter obtido grande reconhecimento público– e só podemos especular que mudanças isso teria suscitado na história do policial em Portugal. Talvez nada houvesse ocorrido. Talvez a figura de Quaresma se tornasse para Portugal o que Sherlock Holmes foi para o conto policial de língua inglesa, consolidando o gênero e produzindo admiradores, seguidores e imitadores. Como a morte do poeta, no entanto, só podemos especular o que teria ocorrido nessa realidade alternativa

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Livros, autores e leituras pelo crítico, jornalista e escritor Carlos André Moreira