Que gente é essa da qual Chico Buarque está falando?

Romance do cantor e compositor é uma crônica urgente da brutalização política e social do país nos últimos anos

Admirável Mundo Livro
7 min readAug 30, 2020
Chico Buarque. Foto: Divulgação

De acordo com quem estiver contando, Essa gente é o sexto ou sétimo romance de Chico Buarque, já que, para muitos, sua verdadeira estreia na narrativa longa não foi bem Estorvo, em 1991, e sim Fazenda Modelo, seu pastiche de A Revolução dos Bichos publicado em 1974. Essa discussão não importa para os propósitos desse texto, e sim entender que gente é essa a Chico alude já no título da obra.

Essa gente é um romance estruturado como uma colagem de blocos de textos de procedência variada. A maior parte da narrativa é ocupada por um diário pessoal escrito pelo protagonista, o escritor decadente Manoel Duarte, mas sobra espaço para o autor intercalar esse material com trechos de correspondências, notícias de jornal, trocas de e-mails, mensagens pessoais e diálogos telefônicos. Aparecem ainda no livro alguns sonhos confusos do protagonista e uma trama secundária a respeito de um jovem tornado castrati (referência a uma obra anterior publicada por Duarte). Fatos do mundo real, principalmente as notícias relacionadas à política do país sob o governo de Jair Bolsonaro, são mencionados de passagem. E para dar uma ideia da urgência que o livro tem como um testemunho recente, o último acontecimento registrado no diário que compõe o romance é datado de 29 de setembro — apenas dois meses antes da publicação do livro.

Manoel Duarte é retratado como uma ruína intelectual. Ele já foi um autor de sucesso no início dos anos 2000, ao publicar um romance histórico chamado O Eunuco do Paço Real, bem recebido pelo público e pela crítica, mas no 2019 em que a narrativa se passa, ele é um fracassado que amarga um melancólico fim de carreira, duas vezes divorciado, sem dinheiro e sem inspiração para concluir qualquer obra digna de nota.

Enquanto manda pedidos insistentes de dinheiro ao seu editor, ele tenta enganar a si mesmo que está trabalhando em um novo grande romance. Sem a grana de novos adiantamentos, já que não concluiu livro algum, ele também corre o risco de ser despejado, mas, persistente no autoengano otimista, garante a todo mundo, até a si mesmo, que o livro estará pronto “dali a três meses”, um prazo que nunca diminui, já que a única coisa que ele consegue redigir são as anotações em seu diário.

Encalhado em sua vocação profissional e artística, Duarte também está com a vida bagunçada no plano sentimental. Ele fica orbitando de modo difuso e por vezes insistente ao redor das suas duas ex-mulheres. Uma delas é a tradutora Maria Clara, que cria sozinha um filho de 12 anos que ambos tiveram mas do qual Duarte se afastou depois que saiu de casa. Consciente do pai sofrível que é, Duarte até narra bem-intencionadas tentativas de reconciliação com seu filho, mas nas entrelinhas fica claro que os dois não conseguem trocar uma palavra nas raras vezes em que estão juntos (um tema que parece ter profunda ressonância na obra de Chico, presente também, de diferentes modos, em Budapeste e em Leite Derramado). A segunda ex de Duarte, Rosane, é uma artista plástica. Ele largou a primeira mulher para juntar-se a Rosane, que por sua vez o largou para ficar com um milionário barão do agronegócio. Isso não impede que às vezes, nas muitas ausências do novo “titular”, Rosane e Duarte tenham sessões de recaída no apartamento dela.

Devido à própria natureza urgente de um livro que também se apresenta como um testemunho do país nos últimos anos, é impossível ler o livro separado de seu contexto político. Apoiador irrestrito do PT, Chico é visto pelo bolsonarismo hoje no poder como inimigo direto. O próprio presidente, pelo que se sabe, até hoje, quase dois anos depois, não assinou o diploma do Camões, concedido em conjunto pelos governos do Brasil e de Portugal.

A temática política do livro se faz presente como um pano de fundo mais do que de modo direto ou escancarado. Mas a voz de Duarte nas entradas do diário, em oposição às várias outras fontes, como mensagens pessoais, diálogos telefônicos, notícias de jornal, fazem de Essa Gente uma sátira não apenas a essa direita bem conhecida que fez de Chico um símbolo da “esquerda” usada como palavrão, mas também um ataque sarcástico à elite financeira e intelectual do país, inclusive à classe artística mais à esquerda da qual o próprio autor faz parte e é um dos grandes expoentes.

“Essa gente” é um bordão preconceituoso muito conhecido de todos nós e usado da burguesia para cima para se referir aos pobres com quem é forçada a conviver em cada vez mais raras ocasiões — de preferência, em uma posição de superioridade. O que Chico faz ao usar essa expressão no título é muito inteligente porque o romance é e ao mesmo tempo não é sobre “essa gente” nesse sentido bastante disseminado no nosso preconceituoso Brasil. Nas situações narradas por Duarte, vistas sem muito escândalo, às vezes como indiferença, a tal “gente” que ocupa o primeiro plano é uma fauna pernóstica e afetada do círculo no qual o protagonista se move. Mas à medida que a leitura avança, aqui e ali começamos a ver essa outra gente largamente ignorada.

É como se Essa gente fizesse a crônica de um gradual embrutecimento que o Brasil sofreu nos últimos anos. Em um momento, por exemplo, um amigo do escritor, após tomar umas e outras na companhia de Duarte em um clube para grã-finos, espanca brutalmente um mendigo de feições indiáticas que dormia na calçada, encostado no muro. Em outra passagem, durante um assalto com refém, o criminoso é fuzilado pela polícia com 80 tiros. A população que assistia à tudo em volta do prédio em que a ação se desenrolou reage com aplausos e pedidos de selfies aos policiais.

O próprio Duarte do livro claramente está no mesmo time dessa “gente” abrutalhada do andar de cima. Ele só vê os outros em termos do que pode tirar, mesmo daqueles que lhe fizeram algum bem. Em uma cena no meio do livro, o escritor quase se afoga na praia e é resgatado por um salva-vidas bonachão com quem acaba fazendo amizade. Só que não demora para Duarte, um canalha reticente apesar da boa imagem que faz de si mesmo, começar espichar o olho também para a mulher desse homem que salvou sua vida, uma holandesa que vive com o salva-vidas em Vigário Geral.

É a partir dos desdobramentos dessa linha da trama que Duarte vai algumas vezes encontrar em Vigário Geral um Brasil que para ele é só abstração e no qual, apesar de sua profissão de escritor e seu sucesso como romancista que tira o material de seus livros da história do país, ele só tem um interesse colateral enquanto precisa encontrar a holandesa de seus sonhos. É uma imagem interessante que um cara como esse só vá conhecer determinadas regiões menos nobres da cidade em que sempre morou quando lança o olho comprido para uma estrangeira

Desde que as manifestações de 2013 deram origem à vertigem política que ainda sacode o país numa escalada sem prazo de validade aparente, alguns livros já foram escritos tentando dar sentido à instabilidade política que se seguiu. Dois que vêm à memória sem muito esforço são Meia-noite e vinte, de Daniel Galera, e Os dias da crise, de Jerônimo Teixeira. Galera narra as manifestações com uma prosa no presente, descrevendo os acontecimentos enquanto ocorrem, e assim a incompreensão do que houve desde junho de 2013 é um pouco partilhada pelos personagens, um deles até se vê tomado pelo impulso de quebrar vidraças enquanto se junta a uma das marchas em uma determinada noite e depois não consegue explicar a si mesmo por que fez aquilo. O protagonista de Jerônimo Teixeira em Os dias da crise é um executivo que parece estar narrando de um ponto no futuro, nosso presente, e refletindo sobre o que ele chama de “um estranho evento político sobre o qual muito se escreve e do qual pouco se entende”.

Nenhum desses dois livros, a meu ver, abarcam de modo satisfatório o tema. São livros escritos por autores perceptivos e com uma bagagem intelectual respeitável, mas a análise minuciosa de ambos para os movimentos de 2013 termina com a recusa final da análise, classificando o Brasil do presente com um fenômeno impossível de entender agora. Por isso vejo que Chico, em Essa gente, consegue ser mais agudo ao falar do mesmo tema. Não é uma análise intelectual presente numa prosa de romance. É um mosaico de colagens e fragmentos que se alinha de modo certeiro com o Brasil de hoje: uma narrativa fragmentada de brutalidade e desagregação pelo ponto de vista de um homem que não só não compreende o que se passa, mas parece que está ativamente tentando não compreender. Há um trecho no qual Duarte, o protagonista do livro de Chico, escreve: “Há manhãs em que desço a persiana para não ver a cidade, tal como outrora recusava encarar minha mãe doente”.

É essa a grande força do livro: Duarte, sua literatura interrompida, sua preguiça procrastinadora, sua linguagem que oscila entre o coloquial e o altamente afetado, com um efeito cômico e de ironia muito grande, até mesmo suas danças e andanças inconstantes com suas mulheres não parecem o centro de um drama, como seria de se esperar, e sim um teatro afetado e vazio.

--

--

Admirável Mundo Livro

Livros, autores e leituras pelo crítico, jornalista e escritor Carlos André Moreira