Questões de classe explodem no brutal “Canção de Ninar”, de Leïla Slimani

Multiétnica, feminista e originária de um país muçulmano, escritora se inspira em crime real para esboçar conflitos da França contemporânea

Admirável Mundo Livro
4 min readMar 14, 2021
A autora Leïla Slimani. Foto: C. Hélie, Divulgação

Poucos livros lançados nos últimos anos têm um começo de maior impacto do que o romance Canção de Ninar, da escritora franco-marroquina Leïla Slimani:

“O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera.”

Vagamente inspirado em um caso policial real, Canção de Ninar narra a história de uma babá que assassina as duas crianças que estavam sob sua guarda. Como fica claro, o crime é literalmente um ponto de partida mais do que chegada. O romance se dedica a escavar os antecedentes dos assassinatos, com um olhar mais sociológico e humano do que o de um thriller aos moldes clássicos do gênero — o que não impediu que a tradução inglesa tentasse vender o livro como “O próximo Garota Exemplar, uma referência ao romance de Gillian Flynn que, sinceramente, não tem nada a ver com o livro de Slimani.

Em Canção de Ninar, um jovem casal burguês decide contratar uma babá depois que a mulher, advogada de formação, recebe uma proposta de emprego — o casal já teve dois filhos, Mila e Adam. Após um anúncio e algumas entrevistas, eles topam com o que parece um presente do acaso, a eficiente Louise, que também é uma excelente cozinheira e logo está excedendo suas funções cuidando da casa como uma empregada doméstica — uma situação que vai ressoar, ou ao menos deveria, muito fortemente no Brasil das empregadas sem direitos trabalhistas que “são praticamente da família”. Quanto mais Louise se torna indispensável à comodidade de seus patrões, menos eles percebem que uma fissura profunda na psique e na vida da babá levará à tragédia.

A história da babá perfeita que é mais do que aparenta e se torna uma ameaça é uma modalidade recorrente da ficção contemporânea, principalmente no cinema (uma perversão da figura clássica de Mary Poppins, que a própria Slimani já disse, em mais de uma entrevista, considerar um personagem sinistro). O que Slimani faz em Canção de Ninar, seu segundo romance, é usar essa moldura para examinar, sob múltiplos ângulos, um quadro social complexo da França contemporânea. A babá é presa de uma solidão e de um desamparo que a devastam em sua vida pessoal.

Viúva de um homem grosseiro e vagamente inútil, mãe de uma filha que fugiu de casa sem mais notícias logo que entrou na adolescência, Louise é uma francesa pobre fazendo um trabalho que, na França moderna, está legado aos imigrantes, o que a torna objeto da perplexidade e do olhar preconceituoso de seus concidadãos. Ela também passou por uma infância abusiva, mora em um pardieiro em uma das regiões mais pobres de Paris, é explorada por um senhorio autoritário e cada vez sabe lidar menos com a natureza transitória e ambígua do papel de uma babá.

Lançado em 2016, Canção de Ninar deu a Slimani o Goncourt, o mais importante prêmio das letras francesas, e a tornou uma espécie de estrela pop literária (no único país em que um escritor ainda pode, de fato, se considerar um astro pop). A tradução inglesa do livro, lançada no ano passado, catapultou seu nome internacionalmente. O presidente da França, Emmanuel Macron, a nomeou para o cargo simbólico de Embaixadora da Francofonia. O gesto não se deve, apenas, ao livro, mas à própria figura de Slimani, também ela um personagem interessante.

Nascida em uma família abastada do Marrocos, ela vive na França desde os 17 anos (hoje tem 39). Estudou Ciência Política na França e atuou como jornalista durante anos — cobriu em primeira mão a Primavera Árabe, em 2011. Um ofício que se deixa entrever no fato de que seus dois romances tiveram como fonte de inspiração eventos reais — o primeiro, No Jardim do Ogro (2014), também jálançado no Brasil pela editora Planeta, também foi inspirado em uma história real: o escândalo de assédio sexual envolvendo o então diretor do FMI, Dominic Strauss-Khan.

Slimani também publicou trabalhos de não ficção. Um dos mais recentes, Sexe et Mensonges: La Vie Sexuelle au Maroc (em tradução livre: “Sexo e Mentiras: a Vida Sexual no Marrocos”), foi escrito após várias entrevistas que realizou com mulheres marroquinas durante uma turnê de divulgação literária, e é um relato direto da opressão sexual das mulheres em um país muçulmano.

Multiétnica, feminista, originária de um país muçulmano, mas com uma postura pessoal firmemente secular e crítica ao Islã, Slimani é ela própria um símbolo de uma França que tenta conciliar sua tradição intelectual aberta com as pressões de uma comunidade imigrante religiosa cada vez mais numerosa.

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Livros, autores e leituras pelo crítico, jornalista e escritor Carlos André Moreira