Traição e morte estilhaçam a família perfeita em “Tua”, de Claudia Piñeiro
Romance da escritora argentina, autora também do suspense “As Viúvas das Quintas- Feiras”, faz a sátira da vida familiar burguesa.
Entre os segredos que se escondem em família, um adultério está longe de ser o pior deles. Esse é o fio central da narrativa de Tua (Verus Editora,140 páginas), breve novela da escritora Claudia Piñeiro que confirma o talento desta autora argentina para mesclar doses de suspense dignas dos melhores thrillers com um olhar satírico sobre as afetações e os equívocos da burguesia — algo em que os argentinos não são amadores, como qualquer um que assistiu ao filme Relatos Selvagens sabe.
Claudia teve sua estreia no Brasil em 2007, com o lançamento no país de As Viúvas das Quintas-Feiras, narrativa policial em que mortes em série escancaravam o pesadelo por trás da aparente vida perfeita de uma comunidade reunida em um condomínio de classe alta em Buenos Aires — quase como um Desperate Housewives argentino, só que bom. O livro ganhou adaptação cinematográfica e uma continuação.
Neste livro, ela volta a revisitar alguns elementos que já se sobressaíam na sua obra mais conhecida: uma prosa ágil, pontuada de humor sarcástico e em que um crime, a ruptura mais radical possível com a pacata vida burguesa, é usado como um mote para uma investigação ao mesmo tempo impiedosa e minuciosa do tédio e das fachadas mal construídas em uma vida bem estabelecida
Tua é narrado majoritariamente pelo ponto de vista de Inês, dona de casa de meia-idade que, acomodada em seu cotidiano por demais classe média, não chega a se surpreender quando encontra, na maleta do marido Ernesto, um bilhete com “um coração desenhado com batom, cruzado por um ‘Te amo’ e assinado ‘Tua’”.
Incomodada mais com a vulgaridade da correspondência do que com a traição em si, que ela afinal considerava inevitável dado o caráter questionável da maioria dos homens, Inês segue o marido depois de uma misteriosa saída à noite para descobrir quem é a misteriosa rival. É então que vê o marido encontrar-se com a secretária e matar a amante durante uma discussão áspera. Aí o crime se torna uma ágil ferramenta na mão da escritora para uma sátira mordaz sobre equívocos, mentiras e falhas de comunicação em uma família aparentemente normal.
Inês esconde o que sabe esperando que o episódio seja a faísca que faltava para restaurar a ligação combalida entre ela e seu marido quando ele lhe confessar tudo. Ernesto não esconde apenas o crime, talvez tenha mais segredos do que Inês imagina. Enquanto dançam esse tango de não ditos e evasivas, os cônjuges, nenhum deles exatamente flor que se cheire, ignoram que a filha faz segredo ela própria de uma grande angústia — vivida sem ter com quem compartilhar, já que seus pais parecem, muitas vezes, mais adolescentes e imaturos do que ela própria.